segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Na medida certa...


Na medida certa.
Com o desejo de confeccionar uma receita,
buscamos pela aquisição dos ingredientes.
Separamos e organizamos,
colocando-as a nossa frente.

Na medida certa,
distribuímos os mesmos em vasilha
pré escolhida.
Pitadas e dosagens
na medida certa.
Intenções firmes e
Amor verdadeiro.
Na medida certa.

Na medida certa,
mexemos e misturamos tudo
até ao ponto chegar,
para só assim ao forno levar.
Seja bolo,
seja torta,
seja o prato que for.
Na medida certa,
Seja na vida de amor.
Tudo na medida certa.

Na medida certa.
Tudo feito com muito esmero e infinito amor.
Ao forno de fogo brando
levamos a cozinhar,
enquanto vigilantes ficamos a esperar.
Na medida certa.

Na medida certa esperamos,
enquanto a ansiedade nos toma pela emoção.
Na medida certa.
A hora de saborear a receita se materializa,
aos poucos,
na medida certa.
Vai se concretizando,
Na medida certa.
acelerando,
mas, sempre na medida certa.

Thürler L.A. (19 de agosto de 2013)


quarta-feira, 31 de julho de 2013

Cante Lá Que Eu Canto Cá

(De Cante lá que eu canto Cá - Filosofia de um trovador nordestino - Ed.Vozes, Petrópolis, 1982)


Poeta, cantô de rua, 
Que na cidade nasceu, 
Cante a cidade que é sua, 
Que eu canto o sertão que é meu.

Se aí você teve estudo, 
Aqui, Deus me ensinou tudo, 
Sem de livro precisá 
Por favô, não mêxa aqui, 
Que eu também não mexo aí, 
Cante lá, que eu canto cá.

Você teve inducação, 
Aprendeu munta ciença, 
Mas das coisa do sertão 
Não tem boa esperiença. 
Nunca fez uma paioça, 
Nunca trabaiou na roça, 
Não pode conhecê bem, 
Pois nesta penosa vida, 
Só quem provou da comida 
Sabe o gosto que ela tem.

Pra gente cantá o sertão, 
Precisa nele morá, 
Tê armoço de fejão 
E a janta de mucunzá, 
Vivê pobre, sem dinhêro, 
Socado dentro do mato, 
De apragata currelepe, 
Pisando inriba do estrepe, 
Brocando a unha-de-gato.

Você é muito ditoso, 
Sabe lê, sabe escrevê, 
Pois vá cantando o seu gozo, 
Que eu canto meu padecê. 
Inquanto a felicidade 
Você canta na cidade, 
Cá no sertão eu infrento 
A fome, a dô e a misera. 
Pra sê poeta divera, 
Precisa tê sofrimento.

Sua rima, inda que seja 
Bordada de prata e de ôro, 
Para a gente sertaneja 
É perdido este tesôro. 
Com o seu verso bem feito, 
Não canta o sertão dereito, 
Porque você não conhece 
Nossa vida aperreada. 
E a dô só é bem cantada, 
Cantada por quem padece.

Só canta o sertão dereito, 
Com tudo quanto ele tem, 
Quem sempre correu estreito, 
Sem proteção de ninguém, 
Coberto de precisão 
Suportando a privação 
Com paciença de Jó, 
Puxando o cabo da inxada, 
Na quebrada e na chapada, 
Moiadinho de suó.

Amigo, não tenha quêxa, 
Veja que eu tenho razão 
Em lhe dizê que não mêxa 
Nas coisa do meu sertão. 
Pois, se não sabe o colega 
De quá manêra se pega 
Num ferro pra trabaiá, 
Por favô, não mêxa aqui, 
Que eu também não mêxo aí, 
Cante lá que eu canto cá.

Repare que a minha vida 
É deferente da sua. 
A sua rima pulida 
Nasceu no salão da rua. 
Já eu sou bem deferente, 
Meu verso é como a simente 
Que nasce inriba do chão; 
Não tenho estudo nem arte, 
A minha rima faz parte 
Das obra da criação.

Mas porém, eu não invejo 
O grande tesôro seu, 
Os livro do seu colejo, 
Onde você aprendeu. 
Pra gente aqui sê poeta 
E fazê rima compreta, 
Não precisa professô; 
Basta vê no mês de maio, 
Um poema em cada gaio 
E um verso em cada fulô.

Seu verso é uma mistura, 
É um tá sarapaté, 
Que quem tem pôca leitura 
Lê, mais não sabe o que é. 
Tem tanta coisa incantada, 
Tanta deusa, tanta fada, 
Tanto mistéro e condão 
E ôtros negoço impossive. 
Eu canto as coisa visive 
Do meu querido sertão.

Canto as fulô e os abróio 
Com todas coisa daqui: 
Pra toda parte que eu óio 
Vejo um verso se bulí. 
Se as vêz andando no vale 
Atrás de curá meus male 
Quero repará pra serra 
Assim que eu óio pra cima, 
Vejo um divule de rima 
Caindo inriba da terra.

Mas tudo é rima rastêra 
De fruita de jatobá, 
De fôia de gamelêra 
E fulô de trapiá, 
De canto de passarinho 
E da poêra do caminho, 
Quando a ventania vem, 
Pois você já tá ciente: 
Nossa vida é deferente 
E nosso verso também.

Repare que deferença 
Iziste na vida nossa: 
Inquanto eu tô na sentença, 
Trabaiando em minha roça, 
Você lá no seu descanso, 
Fuma o seu cigarro mando, 
Bem perfumado e sadio; 
Já eu, aqui tive a sorte 
De fumá cigarro forte 
Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro, 
Toda vez que qué fumá, 
Tira do bôrso um isquêro 
Do mais bonito metá. 
Eu que não posso com isso, 
Puxo por meu artifiço 
Arranjado por aqui, 
Feito de chifre de gado, 
Cheio de argodão queimado, 
Boa pedra e bom fuzí.

Sua vida é divirtida 
E a minha é grande pená. 
Só numa parte de vida 
Nóis dois samo bem iguá: 
É no dereito sagrado, 
Por Jesus abençoado 
Pra consolá nosso pranto, 
Conheço e não me confundo 
Da coisa mió do mundo 
Nóis goza do mesmo tanto.

Eu não posso lhe invejá 
Nem você invejá eu, 
O que Deus lhe deu por lá, 
Aqui Deus também me deu. 
Pois minha boa muié, 
Me estima com munta fé, 
Me abraça, beja e qué bem 
E ninguém pode negá 
Que das coisa naturá 
Tem ela o que a sua tem.


Aqui findo esta verdade 
Toda cheia de razão: 
Fique na sua cidade 
Que eu fico no meu sertão. 
Já lhe mostrei um ispeio, 
Já lhe dei grande conseio 
Que você deve tomá. 
Por favô, não mexa aqui, 
Que eu também não mêxo aí, 
Cante lá que eu canto cá.

Da Felicidade


Quantas vezes a gente, em busca da ventura,

Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

Mario Quintana

sábado, 27 de julho de 2013

A anunciação


Montevidéu

Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim
A saia com mancha
De flor carmesim
E os brincos da orelha
Fazendo tlintlin?
Minha mãe querida
Venho do jardim
Onde a olhar o céu
Fui, adormeci.
Quando despertei
Cheirava a jasmim
Que um anjo esfolhava
Por cima de mim...
Vinícius de Moraes


sexta-feira, 26 de julho de 2013

A arte de ser avó


Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações - todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.
Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha" e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado!
Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz "Vó", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.

Rachel de Queiroz


Rachel de Queiroz

Escritor: Carlos Drummond de Andrade

"Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira."

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade

Fernando Pessoa

"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso."
Fernando Pessoa

Fernando Pessoa